Vida, o maior patrimônio. Dia do Patrimônio 2020
Por Nicole Costa*
Uma das datas alusivas à importância dos patrimônios nacionais, o 17 de agosto é celebrado para rememorar a relevância dos bens materiais e imateriais que constituem a sociedade brasileira. Trata-se de um conjunto, hoje bastante amplo, de patrimônios tangíveis e intangíveis, em cujo conceito fundamental deve estar a percepção de que a cultura é parte integrante e constituinte do desenvolvimento das pessoas. Seguindo por este caminho – que se diferencia, inclusive, das primeiras décadas de estudo e atuação das políticas públicas voltadas para o setor, calcadas nos patrimônios de “pedra e cal”, ao invés de se voltarem para as pessoas, suas práticas e ações, patrimônios são, fundamental e indissociavelmente, constituídos por pessoas. Neste sentido, festejar o dia nacional do patrimônio é também celebrar a vida. Qual o sentido de comemorar, em meio à pandemia do coronavírus – que tanto tem marcado a todos nós –, a existência e a permanência dos patrimônios materiais e imateriais?
Entendendo que a vida é nosso maior patrimônio, compreendemos também que os patrimônios materiais e imateriais constituem-se como uma das instâncias que lhe conferem sentidos de coletividade, pertencimento, questionamento e significação. É através dos patrimônios que as sociedades mantêm estruturas culturais que propõem histórias, sentidos, significações, afetos, relações, modalidades culturais, proposições políticas, visões de mundo. Assim, nos cabe refletir como os patrimônios têm sido ativados e desativados para possibilitar interpretações acerca da brasilidade e do viver no Brasil, nos tempos atuais.
Acreditamos e vivenciamos, cotidianamente, o poder transformador dos patrimônios.
Representações de formas de pensar e estar no mundo, de estilos arquitetônicos e artísticos, de corporeidades e musicalidades, os patrimônios continuam a manter sua relevância no contexto presente – especialmente por possibilitarem prospecções de futuros. Da Arte Kusiwa (Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi) – primeiro bem imaterial registrado no Brasil – às rodas de samba do Rio de Janeiro – também patrimônio intangível brasileiro, passando por bem materiais como conjuntos arquitetônicos de Minas Gerais, Pernambuco, e outros estados, o patrimonializar revela políticas públicas e pensamentos sobre cultura e sociedade, além de permitir uma visão acerca das narrativas que se constroem para o futuro.
É por este motivo que conceitos sobre patrimônio e patrimonialização estão em permanente mudança e reflexão – como os próprios patrimônios. Um dos exemplos recentes refere-se às recentes reinvindicações de movimentos negros nos EUA – que levaram à proposta de retirada da estátua de Theodore Roosevelt da frente do Museu de História Natural de Nova York – numa tentativa de mitigar os efeitos de uma larga trajetória ligada ao colonialismo e ao racismo, ainda persistente em todas as sociedades. Trata-se de um exemplo de como os patrimônios podem ser potentes vetores de reflexões e mudanças, na construção de sociedades em que a vida de todos é, efetivamente, celebrada, valorizada e cuidada.
Patrimônios, enquanto propulsores de novos mundos, agregam existências pela cultura.
Por este motivo, a celebração do Dia do Patrimônio – indo além da efeméride – é, para o IDG (Instituto de Desenvolvimento e Gestão), uma ocasião para reafirmarmos nossa atenção para aqueles que fazem os patrimônios, em todo o mundo. Acreditamos e vivenciamos, cotidianamente, o poder transformador dos patrimônios. É o caso, por exemplo, do Paço do Frevo (PE), instituição recifense gerida pelo IDG – cujo tema central, o Frevo, é patrimônio nacional pelo Iphan, e mundial, pela Unesco. No Frevo e no Paço, as pessoas que fazem este patrimônio imaterial são estimuladas a perceberem a potência articuladora, mobilizadora e política que a dança e a música, tão características desta manifestação cultural, podem provocar. Outro exemplo refere-se ao Cais do Valongo (RJ), também gerido pelo IDG, patrimônio brasileiro (Iphan) e do mundo (Unesco): porto de chegada de africanos escravizados e trazidos à força para o Brasil, hoje símbolo da proposição de futuro em que a discriminação racial e a escravização jamais sejam normalizados.
Patrimônios, enquanto propulsores de novos mundos, agregam existências pela cultura, que por meio da ação patrimonial podem ser transmutadas em resistência e novas proposições para a vida – por isso, a pertinência deste 17 de agosto de 2020, num contexto de pandemia. A potência do patrimônio, reafirmamos, reside na percepção de suas ativações para a preservação e a proposição de mundos, em que vidas dignas, respeitadas, com seus direitos assegurados, sejam sempre nosso maior bem. Deste modo, o convite que fazemos, nesta data, é uma celebração à vida – e a como é importante o autocuidado e o cuidado com o outro, uma vez que é somente através das vivências de mundo, em sociedade, que se constituem e se perenizam os patrimônios.
*Nicole Costa é Gerente Geral do Paço do Frevo e doutora em antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco.